
Publicado no Jornal Folha dos Lagos em 30 de outubro de 2010
Nas vésperas da definição de uma das eleições presidenciais mais polêmicas de nossa história, recordo-me de um ensinamento da Antropologia Clássica que, ao que me parece, mui bem ilustra nosso atual quadro de sucessão federal.
Estudando os Nuer, povo do Nordeste africano, habitantes das proximidades do Nilo, o antropólogo britânico estrutural-funcionalista Evans-Pritchard concluiu que os conflitos entre as diversas tribos componentes daquele povo operavam a partir de um sistema lógico de fusão e cisão: disputas regionais e localizadas levavam uma tribo A a guerrear contra uma tribo B; entretanto, se uma tribo C, de região mais distante, atacasse a tribo A, a então inimiga tribo B a ela se juntava, para combater a “intrusa” tribo C. De igual maneira, por mais que as tribos Nuer A, B e C tivessem suas rivalidades, todas se uniam quando a ameaça vinha ainda mais de fora, ou seja, de outro povo, no caso, os Dinka, povo que era o grande inimigo dos Nuer. Assim, podemos dizer que quanto mais o inimigo era oposto e externo, mais as tribos operavam a fusão; quanto mais o inimigo era próximo geograficamente e culturalmente, mais as tribos operavam a cisão, a divisão.
Não acontece muito diferente no nosso segundo turno. Setores de pensamento progressista, popular, “de esquerda” operaram a partir da cisão no primeiro turno presidencial, já que diferenças acidentais, ou seja, superficiais, entre suas ideologias e projetos de nação, apresentavam cada setor como um inimigo próximo.
No segundo turno, porém, a situação alterou-se: a polarização se deu com um inimigo externo, de outra ideologia completamente oposta: ele representa a tradição, o moralismo, o atraso, o poder do capital privado desmedido, a mentira utilizada como arma para convencimento da população mais pobre. Diante do inimigo “mais inverso” que os enfrentados no primeiro turno, os setores progressistas (ao menos seus militantes) parecem encaminhar-se para uma unidade, ainda que crítica e ponderada.
É o que acontece com o PSOL, o PCB e parte considerável do PV, não fosse a atitude mais que decepcionante de Fernando Gabeira. Migrando para o voto em Dilma ou o voto nulo, os setores progressistas do Brasil isolam José Serra como candidato de uma “quase extrema direita” que, de religiosa, só tem os louvores litúrgicos pelas divindades da privatização, do capital estrangeiro, do preconceito e da mentira.
Penso que, já visualizando as eleições de 2012 em nossa cidade, a tática da fusão me parece ser a única possibilidade dos setores progressistas de Cabo Frio enfrentarem a polarização local (lutando de fora ou de dentro dela), que é mais do que uma polarização de nomes ou grupos – é uma polarização de modelos tradicionais, com maiores ou menores vestes íntimas de modernidade.
No dia de amanhã, não posso deixar de encarar o voto em José Serra como o voto nos Dinka – o inimigo maior, mais oposto, mais distante e, por isso mesmo, mais destruidor. Entendo que chegou a hora da fusão e de falar abertamente que quem vota em Serra vota num modelo de governo que coloca o ser humano, em todas as suas versões e aspirações, abaixo de todos os interesses. É hora de assumir que votar em Dilma é mais do que optar pela fusão ao invés da cisão – o que já seria grandioso: votar em Dilma é optar pelo Brasil.