
Publicado no Jornal Folha dos Lagos em 29 de maio de 2010.
Na última semana, uma obra começou a ser empreendida na área anexa à Agência da Capitania dos Portos de Cabo Frio, localizada no bairro da Gamboa. A área vinha sendo usada há tempos como estacionamento informal na localidade. Uma grande casuarina, presente há anos, marca uma tradição visual daquela comunidade, já que, para Ferrara, através do imaginário humano, a imagem urbana passa a significar algo mais, devido à incorporação de significados em relação à imagem básica que lhes deu origem.
Ocorre que a citada obra se desenvolve sem consulta – ou ao menos informe – à população local; sem fixação de placa que anuncie objetivos e custos do empreendimento, como determina a lei; e contando ainda com a derrubada da histórica casuarina, nos últimos dias, ao arrepio de qualquer ação ou parecer ambiental, cabendo ainda a pergunta: afinal, quem é o proprietário da área? A Prefeitura ou a Marinha?
Em nossos estudos no Departamento de Antropologia da UFF, temos nos dedicado à questão do espaço e do entorno ambiental da Gamboa como o foco dos conflitos culturais da localidade. Cercada por todos os lados com elementos espaciais simbólicos de contenção, a cultura do pescador artesanal se vê confinada, já que seu território de entorno possui, na verdade, vários “donos do pedaço”, como diz Magnani: de um lado, o Clube Costa Azul; do outro, o Loteamento Marinas do Canal, visualizando ainda o Projeto Marnas Cabo Frio, todos filiados à especulação imobiliária; “atrás”, o Morro do Telégrafo, que fecha a expansão do bairro naquela direção e veda a ao turista a visão de uma Cabo Frio com bairros carentes; na frente, o canal Itajurú, então propício à pesca artesanal, hoje quase infértil devido à ação de pescadores industriais, ocupantes dos territórios marítimos que desejam, devido à inexistência de um Plano Municipal de Gerenciamento Costeiro.
Os espaços da população local têm sido historicamente “tomados”, seja por ações de especulação imobiliária, abuso de poder econômico ou da própria natureza. A única atitude possível de ocupação de território, que sobrou ao pescador artesanal, acabou sendo, há quase um século, o estabelecimento de moradias nas encostas do Morro do Telégrafo, ação que, por sua vez, de maneira irônica, tem sido fiscalizada com rigor, chegando a ter gerado o temor de caracterizar mais um espaço tomado de maneira exógena, possibilidade hoje que não nos assusta, diante da ação coerente e integrada que o IPHAN tem realizado na área.
O entorno ambiental, não só no seu sentido natural, mas também no seu sentido domesticado, salienta Evans-Pritchard, influencia diretamente um sistema social. Roberto Kant de Lima, talvez o grande nome da antropologia da pesca no Brasil e um dos organizadores da Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo, destaca, de forma semelhante, a análise da topografia do lugar, no sentido da observação do espaço no entorno, enquanto item relevante para a formação de uma identidade social. Para Bourdieu, por sua vez, as estruturas espaciais formam não só a representação do mundo do grupo, mas o próprio grupo, que “organiza a si mesmo de acordo com sua representação”.
Nesse sentido, observamos a sequência de um histórico de desrespeito dos poderes públicos e/ou da iniciativa privada local, no que se refere aos usos do espaço urbano e natural da Gamboa. Sem serem consultados, sequer informados, os moradores observam a ocupação impositiva de seu espaço de desenvolvimento cultural para finalidades desconectadas da identidade local. Um Plano Diretor Municipal abstrato, com as leis específicas que lhe compõem até hoje engavetadas, coopera com o processo. Não se trata de um saudosismo, de um ambientalismo romântico, nem de um culturalismo piegas. Trata-se da incoerência dos poderes de uma cidade cuja história se fundamenta na atividade pesqueira artesanal e cujo discurso de Governo se baseia no respeito ao cidadão, sentimento que hoje somente se materializa em propagandas e informes publicitários de gosto duvidoso, sinceridade suspeita, financiamento obscuro e verdade invisível.
Na última semana, uma obra começou a ser empreendida na área anexa à Agência da Capitania dos Portos de Cabo Frio, localizada no bairro da Gamboa. A área vinha sendo usada há tempos como estacionamento informal na localidade. Uma grande casuarina, presente há anos, marca uma tradição visual daquela comunidade, já que, para Ferrara, através do imaginário humano, a imagem urbana passa a significar algo mais, devido à incorporação de significados em relação à imagem básica que lhes deu origem.
Ocorre que a citada obra se desenvolve sem consulta – ou ao menos informe – à população local; sem fixação de placa que anuncie objetivos e custos do empreendimento, como determina a lei; e contando ainda com a derrubada da histórica casuarina, nos últimos dias, ao arrepio de qualquer ação ou parecer ambiental, cabendo ainda a pergunta: afinal, quem é o proprietário da área? A Prefeitura ou a Marinha?
Em nossos estudos no Departamento de Antropologia da UFF, temos nos dedicado à questão do espaço e do entorno ambiental da Gamboa como o foco dos conflitos culturais da localidade. Cercada por todos os lados com elementos espaciais simbólicos de contenção, a cultura do pescador artesanal se vê confinada, já que seu território de entorno possui, na verdade, vários “donos do pedaço”, como diz Magnani: de um lado, o Clube Costa Azul; do outro, o Loteamento Marinas do Canal, visualizando ainda o Projeto Marnas Cabo Frio, todos filiados à especulação imobiliária; “atrás”, o Morro do Telégrafo, que fecha a expansão do bairro naquela direção e veda a ao turista a visão de uma Cabo Frio com bairros carentes; na frente, o canal Itajurú, então propício à pesca artesanal, hoje quase infértil devido à ação de pescadores industriais, ocupantes dos territórios marítimos que desejam, devido à inexistência de um Plano Municipal de Gerenciamento Costeiro.
Os espaços da população local têm sido historicamente “tomados”, seja por ações de especulação imobiliária, abuso de poder econômico ou da própria natureza. A única atitude possível de ocupação de território, que sobrou ao pescador artesanal, acabou sendo, há quase um século, o estabelecimento de moradias nas encostas do Morro do Telégrafo, ação que, por sua vez, de maneira irônica, tem sido fiscalizada com rigor, chegando a ter gerado o temor de caracterizar mais um espaço tomado de maneira exógena, possibilidade hoje que não nos assusta, diante da ação coerente e integrada que o IPHAN tem realizado na área.
O entorno ambiental, não só no seu sentido natural, mas também no seu sentido domesticado, salienta Evans-Pritchard, influencia diretamente um sistema social. Roberto Kant de Lima, talvez o grande nome da antropologia da pesca no Brasil e um dos organizadores da Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo, destaca, de forma semelhante, a análise da topografia do lugar, no sentido da observação do espaço no entorno, enquanto item relevante para a formação de uma identidade social. Para Bourdieu, por sua vez, as estruturas espaciais formam não só a representação do mundo do grupo, mas o próprio grupo, que “organiza a si mesmo de acordo com sua representação”.
Nesse sentido, observamos a sequência de um histórico de desrespeito dos poderes públicos e/ou da iniciativa privada local, no que se refere aos usos do espaço urbano e natural da Gamboa. Sem serem consultados, sequer informados, os moradores observam a ocupação impositiva de seu espaço de desenvolvimento cultural para finalidades desconectadas da identidade local. Um Plano Diretor Municipal abstrato, com as leis específicas que lhe compõem até hoje engavetadas, coopera com o processo. Não se trata de um saudosismo, de um ambientalismo romântico, nem de um culturalismo piegas. Trata-se da incoerência dos poderes de uma cidade cuja história se fundamenta na atividade pesqueira artesanal e cujo discurso de Governo se baseia no respeito ao cidadão, sentimento que hoje somente se materializa em propagandas e informes publicitários de gosto duvidoso, sinceridade suspeita, financiamento obscuro e verdade invisível.